Dr. Sarkis Joud Bayeh
Vice Presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família – Sobramfa Geriatra, Sanitarista e Médico de Trabalho.
Revista nº 22
Editorial -A saúde do brasileiro
O estresse nas grandes cidades e o estresse dos estudantes em época de provas são assuntos que, ultimamente, têm sido largamente comentados. Também é comum ouvirmos as pessoas dizerem que estão estressadas. É importante, porém, não banalizarmos um assunto tão importante.
O estado físico e psicológico do corpo conhecido como estresse pode ser especificado como um conjunto de reações vitais, que facilmente nos revelam a sua função original, a qual difere do significado adquirido
pela palavra ao longo do tempo. Tais reações seriam, entre outras, a defesa ao meio ambiente hostil ou a capacidade de moldar-se a ele.
Em geral, vê-se o estresse de uma forma negativa, como se fosse algo exclusivamente prejudicial ao indivíduo. Entretanto, quando acontece no padrão normal, a reação de estresse é boa, pois fortalece o indivíduo e o prepara para desafios.
No entanto, o senso comum só tem olhos para o “mau estresse”. Trata-se do estado causado pelas mudanças maléficas nos hábitos de vida e na interação com o meio ambiente, no qual perde-se a naturalidade das reações de estresse. As pessoas passam a receber estímulos interpretados pelo corpo como geradores de estresse muitas vezes ao dia, numa freqüência maior do que a capacidade do corpo de eliminar seus efeitos.
No cenário da Saúde Ocupacional, existem diversas situações ligadas ao estresse. Demissão de colegas, medo de perder o emprego, falta de realização econômica e profissional são alguns dos fatores apontados como causas inevitáveis do problema.
Além disso, o recentemente definido e tipificado assédio moral também tem influência sobre os casos de estresse ocupacional.
No caso específico da escola, da mesma maneira que em outros tipos de organização, existe a carência de canais adequados de comunicação entre as chefias e os subordinados, entre o corpo docente e o discente. O trabalho do professor é geralmente solitário, mas ele interage com os superiores de um modo desequilibrado, unilateral.
Professores trabalham e tomam as decisões solitariamente, lidam sozinhos com pressões internas da classe, mas sempre obedecem a ordens de terceiros e sofrem um controle de trabalho muito rígido, tendo de responder a expectativas pré-concebidas. Tal ritmo ocupacional aos poucos vai submetendo o indivíduo ao estresse.
Com base em pesquisas, conclui-se que a faixa predominante de docentes acometidos de estresse está centrada em mulheres de 35 a 40 anos que estão em sala de aula como professoras. Quanto ao tempo de serviço dessas docentes, conclui-se que está entre 9 e 11 anos. A conseqüência mais freqüente foi a fadiga, sobretudo quando a pessoa trabalha mais de 40 horas semanais.
Tais resultados, embora não nos permitam delimitar precisamente causas e conseqüências do problema, possibilitam ao menos alguns questionamentos. A já conhecida emancipação feminina teria suscitado esse tipo de problemas nas mulheres? A mulher tem carga dobrada de trabalho, pois não se dedica apenas ao trabalho profissional, mas também aos filhos e aos serviços domésticos. A faixa etária preponderante parece demonstrar justamente isso. Além disso, a faixa econômica em que se integram as professoras parece não permitir que o trabalho doméstico seja feito por uma empregada do lar.
Devemos levar em conta, também, que a carga horária do trabalho em escolas está sendo subconsi- derada; afinal, o trabalho docente envolve mais do que as horas dedicadas às aulas. Vale ainda dizer que mais de 40 horas semanais de trabalho são simplesmente extenuantes. A legislação se deu conta, há anos, do caráter extenuante da docência, tanto que abrandou o tempo pré-aposentadoria de professores.
Vale a pena começarmos a pensar também numa reestruturação da legislação trabalhista, partindo do viés médico, mas exatamente no sentido oposto ao que se tem visto. Se os legisladores têm encaminhado a questão no sentido de uma flexibilização das leis trabalhistas, talvez valha a pena que o discurso médico se posicione contra essa flexibilização. Colabora para justificar esta posição a constatação de que a partir dessa flexibilização os empregadores tendem a explorar mais os empregados, sobretudo aumentando o número de horas extras, remuneradas ou não (reuniões, “janelas”, plantões), tendo-se em vista que esse incremento de tempo de trabalho provoca males significativos à saúde dos empregados.
Ainda no âmbito das normas trabalhistas, talvez devêssemos pensar no implemento das políticas de controle interno das empresas. No caso das escolas e universidades, esse tipo de controle implicaria a definição de punições efetivas aos desmandos de chefes (coordenadores, diretores) e ao desrespeito a direitos individuais, sobretudo quando se pensa no fenômeno recentemente delimitado e denominado assédio moral. Sobre esse assunto, gostaríamos de nos debruçar com mais atenção. Enquanto a reação natural de estresse responde ao esquema: ameaça Ôreação fisiológica de estresse Ô grande esforço físico Ô relaxamento, diante do assédio moral, como veremos adiante, o indivíduo sofre os efeitos do estresse continuado, reconhecido no esquema: ameaça Ô reação fisiológica de estresse Ô nova ameaça Ô nova reação fisiológica de estresse Ô nova ameaça Ônova reação fisiológica de estresse Ô (...) Ôestresse acumulado.
O assédio moral, fenômeno freqüente desde tempos imemoriais, mas que só na década de 1990 recebeu esse nome e maior atenção, revela-se de incontáveis formas, atitudes e gestos, na maior parte das vezes velados ou dissimulados, circunscritos apenas ao universo do empregador e do empregado assediado. Consiste fundamentalmente em uma atitude de desprezo e desrespeito aos conhecimentos e às capacidades do trabalhador, de perseguição e desqualificação da vítima.
Na definição do psicólogo sueco Heinz Leymann, cujos estudos foram de extrema importância para dinamizar a atual atenção ao assédio moral, trata-se da deliberada degradação das condições de trabalho por meio do estabelecimento de comunicações não-éticas, abusivas, que se caracterizam pela repetição por longo tempo de duração de um comportamento hostil que um superior ou colega desenvolvem contra um indivíduo que apresenta, como reação, um quadro de miséria física, psicológica e social duradouro.
Esses são casos típicos de assédio moral, mas a condição não se resume a isso. Consistem também em assédio moral as situações de humilhação de um funcionário por parte de seu chefe. É o caso do superior que não dá qualquer valor às tarefas efetuadas por seu subordinado, que o menospreza, e que faz questão de deixá-lo bem claro, para este e para os seus colegas de trabalho.
O sofrimento ocasionado por essa situação de perversidade pode manifestar-se pela presença de sintomas persistentes. Dentre os mais freqüentes, podemos citar: dores generalizadas; fadiga; transtornos no sono: insônia ou sonolência excessiva; depressão.
É claro que nem todos esses sintomas aparecem simultaneamente ou em todos os casos de assédio moral. No quadro geral, a saúde mental e física da pessoa é comprometida a partir do abatimento moral que se processa. O constrangimento e a sensação de impotência levam a vítima do assédio moral a degradar sua qualidade de vida e sua condição de trabalho.
Dessa forma, os sintomas e distúrbios anteriormente citados costumam ter longa duração. Mesmo depois que a pessoa deixa de sofrer o assédio, é normal que ainda padeça de seus sintomas, uma vez que tem dificuldade de esquecer o desprezo a que esteve submetida, muitas vezes transformado em experiência traumática.
Em inúmeras ocasiões, a vítima se torna uma pessoa insegura, e muitas vezes é levada ao ostracismo no ambiente de trabalho, sobretudo nos casos em que denuncia aquele que a assediou. Não raras vezes, é acusada de sofrer de “mania de perseguição”, de reclamar indevidamente. No caso do professor, se este abrir o jogo com seus alunos, sabe-se que a demissão é certa.
Sentindo-se culpado por desestruturar o ambiente de trabalho, passado o ímpeto inicial de autodefesa, o trabalhador que sofre de assédio moral perde quase totalmente a capacidade de defender-se. Torna-se confuso, incapaz de discernir o que é normal, o comportamento que se pode esperar de um chefe e o que já se pode entender como abusivo. Nesses momentos, perpetra-se com mais contundência o assédio moral. A percepção de que a vítima já não sabe reagir e não reagirá às suas atitudes permite ao agressor agir mais livremente. Muitos professores declaram que são perseguidos por seus chefes e que, por causa deles, jamais atingirão cargos de chefia.
Dessa maneira, o principal pilar do apoio médico e psicológico deve ser na direção de aumentar a auto-estima do paciente, para que ele possa identificar as situações que constituem assédio e possa sentir-se estimulado a tomar atitudes de enfrentamento.
De acordo com o estudo de Heinz Leymann, fundamentado em entrevistas com vítimas e testemunhas, o assédio moral se manifesta de doze formas diferentes, usualmente conjugadas, as quais resumirei a seguir:
1- Impedir o (a) trabalhador(a) de se expressar; não lhe dirigir a palavra; descon- siderar sua opinião; inter- rompê-lo quando fala.
2-Isolar o (a) trabalhador(a); trocar o trabalhador de sala, separando-o dos demais; privá-lo de meios de comunicação (telefone, e-mail, fax, internet).
3- Desconsiderar o (a) trabalhador(a); difundir rumores, ridicularizar, humilhar; disseminar chacotas a seu respeito; ignorar sua presença; impedir a sua participação em reuniões; creditar a si próprio(a) trabalho do(a) assediado(a).
4- Desacreditar o (a) trabalhador(a); não lhe dar tarefas; obrigá-lo a realizar tarefas que exijam qualificação menor do que a que o trabalhador possui (por exemplo, em fotocopiadoras e arquivos), ou muito superior à sua; determinar a realização de tarefas inúteis, repetitivas; colocá-lo em tarefas degradantes; humilhá-lo diante de seus colegas.
5- Comprometer a segurança e a saúde do (a) trabalha- dor(a); colocá-lo em trabalhos perigosos, penosos ou insalubres; suspender a entrega de equipamentos de proteção individual.
6- Desestabilizar o (a) trabalhador(a); ridicularizar suas convicções religiosas ou políticas, seus gostos, sua situação amorosa ou afetiva; colocar em dúvida sua capacidade de julgamento e decisão; delimitar horários de trabalho incompatíveis com a vida familiar habitual.
7- Impor terrorismo por telefone, e-mail ou correio, muitas vezes em domicílio; controlar com exclusividade os seus horários de chegada, de saída, de ida ao refeitório ou sanitário; convocá-lo para a realização de horas extras apenas para assediar sem testemunhas.
8- Ridicularizar o (a) trabalhador(a); imitar seus gestos, seus trejeitos, sua voz, seu modo de caminhar.
9- Induzir o (a) trabalhador(a) ao erro; fornecer instruções confusas e vagas, ou não dar qualquer instrução sobre a tarefa a ser efetuada.
10- Provocar o (a) traba- lhador(a), com a finalidade de induzir a uma reação descontrolada.
11- Implantar diferenças de tratamento entre trabalhadores que exercem a mesma função ou funções equivalentes; distribuir de forma não eqüitativa as tarefas ou estabelecer desigualdades de remuneração.
12- Praticar desqualificação externa (para fora do local de trabalho), por meio do fornecimento de informações desabonadoras sobre a conduta do (a) trabalhador(a), com desconsiderações e insinuações prejudiciais à sua carreira e ao seu bom nome.
Há um dado importante a acrescentar sobre o alvo do assédio moral. Um estudo da psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen demonstrou que, ao menos na França, o assédio moral é mais freqüente entre trabalhadores de empresas estatais e de serviços públicos. Mais especificamente, ocorre sobretudo com profissionais da saúde e com professores. Acontece, também, mais com mulheres do que com homens.
Vale ressaltar, no entanto, dois detalhes da pesquisa francesa. Em primeiro lugar, o assédio moral parece ser mais freqüente com mulheres grávidas, o que indicaria um esforço para que a mulher deixe o cargo. Por outro lado, entre os homens é encontrada maior resistência em admitir e denunciar os casos de assédio moral, por se sentirem mais envergonhados de sua situação e da desvalorização de seus empenhos e conquistas. Muitas vezes, nem mesmo suas famílias têm conhecimento da situação vivida pelo trabalhador que sofre o assédio.
Quanto a números, pesquisas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) indicam que 8,1% da população economicamente ativa da Europa, o que representa um contingente de 12 milhões de trabalhadores, são vítimas de assédio moral. Desse contingente, 26% correspondem a funcionários públicos (sendo que 14% trabalham em setores administrativos e 12% na área de serviços) e 13% a trabalhadores de restaurantes e hotéis.
No Brasil, o INSS publicou, no Decreto no 3.048, de 6 de maio de 1999, uma relação de transtornos mentais e comportamentais relacionados ao trabalho. Entretanto, é absolutamente inexistente qualquer lei ou alteração na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que tipifique e reprima o assédio moral.
Face a um caso de assédio, o único recurso da vítima é proceder à Justiça com base na Declaração dos Princípios Básicos de Justiça para Vítimas de Crime e Abuso de Poder, das Nações Unidas, estabelecida na Assembléia Geral de 29 de novembro de 1985.
Idealmente, todavia, a legislação brasileira deveria ser reformulada de modo a respeitar o artigo 1o da Declaração, que afirma a necessidade de adoção, nacional e internacionalmente, de medidas para assegurar o universal e efetivo reconhecimento dos direitos das vítimas de crime e abuso de poder.
No artigo 18 do anexo dessa declaração, as “vítimas” são definidas como pessoas que, individualmente ou coletivamente, tenham sofrido dano, incluindo físico ou mental, emocional, perda econômica ou substancial restrição aos seus direitos fundamentais, em virtude de atos ou omissões que não constituam ainda violação da legislação penal nacional, mas representam violações de normas internacionalmente reconhecidas em matérias de direitos humanos.
É na definição desses danos, principalmente nos de ordem física, psíquica ou emocional, que nós, médicos, devemos intervir. É inegável que se trata de um caso de saúde pública, sobre o qual temos o dever de intervir, a partir dos conhecimentos que a medicina nos aporta.
O médico deve encontrar caminhos, dentro de sua especialidade, é claro, mas também como ser humano sensível e atuante.
Sempre pelo paciente, sempre pelo ser que nos dispomos a ajudar.
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